Fora das linhas também vale?

Olha, pintaram-me toda fora das linhas, já viste?

Procurei justiça em situações onde outros só sentiam pena mas não há justiça nenhuma em sentir-me assim. Fui desenhando com cuidado e durante muito tempo a minha cabeça foi um sítio bom onde morar. Deixei cá entrar as minhas pessoas preferidas e elas viram coisas que gostaram e foram ficando. Mas foi deixando de ser e não tenho deixado entrar ninguém. Sempre que abro a porta entram pessoas que lascam paredes e eu já tenho feito estragos suficientes sozinha.

Olho para as paredes riscadas e incompletas e tenho medo que me definam. Procuro culpar quem as desenhou mas se calhar fui eu que comecei. Passo as mãos pelas linhas todas que não reconheço, recordações deixadas por quem não ficou. Tento encontrar justificações para a confusão mas não me encontro nem a mim. Reconheço linhas traçadas por quem hoje me é desconhecido.

Repeti nas minhas notas, como se fosse um mantra, “às vezes gostava de parar sozinha num sítio a olhar para o mundo que já passou por nós”. Tentei encontrar sentido na frase que escrevi sem pensar, no miradouro que pintaram sem cuidado. Mas é mentira, gostava de parar a olhar para o mundo que continua a passar por mim. Encontrar uma semelhança que me faça acreditar que ainda aqui vivo.

Tenho medo que olhem para mim como o desenho inacabado que sei que sou. Ainda bem que o sou, acho eu, mas tenho medo que nunca tenha um fim. Que nunca chegue a um sítio confortável e onde os riscos formem uma imagem que me deixe feliz ou pelo menos uma que se assemelhe a quem sinto que sou. É que sei que crescemos e nos moldamos uns à volta dos outros e já repeti que gosto muito desse nó infinito que se calhar é impossível de desfazer. Mas às vezes preferia não ter crescido. Houve uma vez que foi a última e não soubemos. Convenço-me todos os dias que o melhor foi não saber.

A casa já não parece minha.

É que olha, já aceitei há muito tempo que me pintaram toda fora das linhas. Que a minha vida é rabiscada de acordo com a forma como os outros me tratam. Um dia desenho por cima e pode ser que lhe encontre um sentido. Arte abstrata também é arte mas por favor da próxima pinta com mais cuidado.

Pinta-me pelo menos da mesma cor e pode ser que volte a gostar de amarelo.